
Por Fabrizio Caldeira Landim (*)
1. Introdução: ajuste fiscal, técnica legislativa e limites constitucionais
A Lei Complementar nº 224/2025, oriunda do PLP nº 128/2025, representa uma inflexão relevante na política tributária brasileira ao promover a redução linear de incentivos e benefícios fiscais federais. Embora apresentada sob a retórica de racionalização dos gastos tributários, a norma opera, em essência, um aumento indireto da carga tributária, especialmente sobre a renda empresarial e o consumo.
O ponto de maior tensão jurídica não reside apenas no impacto econômico da medida, mas na técnica legislativa adotada, que reclassifica regimes jurídicos de apuração — notadamente o lucro presumido — como se fossem benefícios fiscais sujeitos a cortes lineares. Essa opção normativa desafia o arcabouço constitucional e infraconstitucional vigente, sobretudo quando analisada à luz da Emenda Constitucional nº 132/2023, que introduziu no sistema tributário brasileiro o dever expresso de mitigação da regressividade.
2. O lucro presumido na arquitetura constitucional da tributação da renda
O Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) encontra fundamento no art. 153, inciso III, da Constituição Federal, sendo estruturado segundo os critérios da generalidade, universalidade e progressividade. A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), por sua vez, decorre do art. 195, inciso I, alínea “c”, incidindo sobre a mesma materialidade econômica.
Nesse contexto, o lucro presumido sempre foi tratado pelo ordenamento jurídico como técnica de apuração da base de cálculo, e não como favor fiscal. O art. 44 do Código Tributário Nacional é inequívoco ao estabelecer que a base de cálculo do imposto de renda pode ser real, arbitrada ou presumida, conferindo às três modalidades idêntico status jurídico.
A presunção não representa renúncia estatal, mas mecanismo de praticabilidade tributária. Ao optar pelo lucro presumido, o contribuinte assume riscos: se sua margem real for inferior à presumida, pagará mais tributo do que no regime do lucro real. A eventual vantagem não decorre de liberalidade do Estado, mas de uma escolha do contribuinte em troca de simplificação e redução de custos de conformidade.
3. A reclassificação indevida do lucro presumido como benefício fiscal
A LC 224/2025, ao incluir expressamente o lucro presumido no rol de incentivos sujeitos à redução (art. 4º, §2º, II, “a”), adota uma premissa conceitual problemática: a de que a diferença entre a margem presumida e a margem real constituiria gasto tributário implícito.
Sob essa lógica, o art. 4º, §4º, inciso VII, combinado com o §5º, impõe acréscimo de 10% sobre os percentuais de presunção para empresas com receita bruta anual superior a R$ 5 milhões. Não se trata de simples majoração nominal, mas de elevação da base de cálculo presumida. No setor de serviços, por exemplo, o coeficiente passa de 32% para 35,2% sobre a receita excedente.
Essa reclassificação subverte a natureza jurídica do regime e cria antinomia com o CTN. Ao tratar técnica de apuração autorizada por norma geral como benefício fiscal contingente, o legislador compromete a segurança jurídica e a previsibilidade, pilares indispensáveis à tributação da renda.
Ao reduzir isenções, alíquotas zero, e regimes de apuração dos créditos presumidos e reduções de base de cálculo de forma linear (10%), sem qualquer distinção quanto à essencialidade dos bens, à posição do contribuinte na cadeia econômica ou ao impacto final sobre o consumidor, a lei promove aumento uniforme de carga tributária em tributos reconhecidamente regressivos, como PIS, Cofins e IPI.
Na prática, setores historicamente beneficiados por regimes de desoneração voltados à moderação de preços (não obstante com maior tributação na indústria – regime de tributação monofásica, como medicamentos, produtos farmacêuticos, higiene pessoal, defensivos agrícolas e alimentos), passam a sofrer tributação residual, sem direito à apropriação de créditos, nos termos do art. 4º, §7º, da LC 224/2025. O resultado é a transferência direta do ônus tributário ao consumidor final (consequência lógica dos reflexos econômicos da alteração de carga tributária), em frontal violação ao princípio da capacidade contributiva.
4. Capacidade contributiva, regressividade e EC 132/2023
A Emenda Constitucional nº 132/2023 elevou a mitigação da regressividade ao patamar de comando constitucional vinculante. Alterações na legislação tributária não podem agravar a incidência sobre a renda consumida nem produzir efeitos regressivos indiretos.
A majoração da base de cálculo do lucro presumido, embora formalmente incidente sobre a renda, gera efeitos econômicos regressivos. Empresas de médio porte, especialmente prestadoras de serviços, tendem a repassar o aumento de carga tributária aos preços finais, pressionando o consumo.
Somam-se a isso as demais medidas da LC 224/2025 — redução de créditos presumidos, tributação residual sobre alíquotas zero e restrições à não cumulatividade de PIS e Cofins — compondo um cenário sistêmico de regressividade material incompatível com o novo texto constitucional.
5. Violação à legalidade, à segurança jurídica e à vedação ao confisco
A elevação indireta da base de cálculo por meio da reclassificação conceitual do lucro presumido afronta:
- o princípio da legalidade estrita em matéria tributária;
- a proteção da confiança legítima dos contribuintes;
- a isonomia, ao criar diferenciações artificiais;
- e, em determinados contextos setoriais, a vedação ao efeito confiscatório.
Não se trata de ajuste marginal, mas de alteração estrutural de regime jurídico consolidado há décadas, sem transição adequada e sem aderência aos limites constitucionais materiais.
6. Judicialização como resposta institucional legítima
Diante desse quadro, a reação judicial dos contribuintes revela-se não apenas previsível, mas juridicamente fundamentada. A discussão transcende interesses individuais e assume contornos de controle de constitucionalidade do modelo adotado pela LC 224/2025.
Entre os fundamentos centrais a serem explorados destacam-se: (i) a natureza jurídica do lucro presumido como técnica de apuração; (ii) a violação ao art. 44 do CTN; (iii) a afronta ao art. 145, §1º, da Constituição; e (iv) o descumprimento do dever constitucional de mitigação da regressividade introduzido pela EC 132/2023.
7. Conclusão
A LC 224/2025 revela um movimento de ajuste fiscal que ultrapassa os limites da técnica tributária e ingressa no campo da inconstitucionalidade material. Ao redefinir regimes de apuração como benefícios fiscais e impor cortes lineares, o legislador compromete a coerência do sistema tributário e agrava distorções regressivas que a Constituição passou a repelir expressamente.
Nesse cenário, a resistência jurídica qualificada não apenas protege os contribuintes, mas cumpre função institucional essencial de preservação da ordem constitucional tributária.
(*) Advogado, especialista em Direito Tributário pelo IBET/BSB, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP/BSB.