22 de agosto de 2022

O princípio da legalidade tributária e a visão do STF

Se há 10 anos o Executivo reduziu a zero alíquotas de PIS e Cofins, isso não justifica que hoje possa majorá-las

Historicamente, o princípio da legalidade tributária surgiu da necessidade de consentimento do povo para a imposição de obrigações fiscais, sendo a reserva de lei nesta matéria exigida, de forma universal, nos Estados Constitucionais de Direito, já que legalidade é a base sobre a qual a se assenta o Estado de Direito.

 

Inserido na Constituição Federal (CF) dentro da Seção “Das limitações ao poder de tributar”, mais especificamente no artigo 150, inciso I, e de igual modo, nos artigos 9º, inciso I, e 97 do Código Tributário Nacional (CTN), o princípio da estrita legalidade estabelece que é vedado aos entes tributantes exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça e impõe que todos os elementos necessários ao nascimento da obrigação tributária devem estar previstos em lei.

 

Para tanto, a lei deve prever a definição do fato gerador da obrigação tributária e de seu sujeito passivo, bem como fixar a alíquota e a base de cálculo do tributo.

A Constituição prevê a mitigação da legalidade tributária ao permitir que o Poder Executivo, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, altere as alíquotas do Imposto de Importação, Imposto de Exportação, Imposto sobre Produtos Industrializados e imposto sobre operação de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; que os estados deliberem, através de convênio, sobre a alíquota do ICMS-Combustível e; que o Poder Executivo reduza ou restabeleça a alíquota da CIDE-Combustível.

 

A Lei 10.865/2004 delegou ao Poder Executivo a tarefa de reduzir ou aumentar as alíquotas por ato infralegal, conforme o artigo 8º, § 11, que trata do PIS-Cofins/Importação, e o artigo 27, § 2º, que trata do PIS-Cofins incidente sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não cumulatividade.

 

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.277 e do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.043.313, a Suprema Corte analisou a situação em que o legislador delegou ao Executivo a possibilidade de reduzir e restabelecer as alíquotas das contribuições sociais (PIS/Pasep e Cofins). No caso, o Poder Executivo, dispondo da delegação prevista na Lei 10.865/2004, reduziu a zero as alíquotas das contribuições e, após muitos anos, resolveu majorá-las.

 

A discussão envolve o âmago do princípio da legalidade tributária, que pode e deve ser visto como um sobreprincípio, ou seja, um daqueles que deve ser observado e raramente mitigado devido ao grau de importância atrelado à segurança jurídica tributária.

 

Ao julgar o RE nº 1.043.313 (Tema 939), o STF, por maioria de votos, declarou constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do § 2º do art. 27 da Lei 10.865/04, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal.

 

O voto vencedor foi proferido pelo ministro Dias Toffoli e seguido pelos demais ministros, com exceção do ministro Marco Aurélio, que entendeu que a majoração estava em desacordo com o regime constitucional da legalidade tributária.

 

No julgamento da ADI nº 5.277, o Supremo Tribunal Federal concluiu pela constitucionalidade do artigo 5º, caput, e § 4º, da Lei 9.718/98, com redação dada pela Lei 11.727/08, que permite ao Poder Executivo fixar coeficientes para reduzir as alíquotas do PIS/Pasep e da Cofins incidentes sobre a receita bruta auferida na venda de álcool, inclusive, para fins carburantes; e alterar para mais ou para menos, em relação a classe de produtores, produtos ou sua utilização; sob o fundamento de que o princípio da legalidade é verificado em cada caso concreto e que a lei teria estabelecido o teto e as condições a serem observados pelo Poder Executivo.

 

Inicialmente, é possível imaginar que não haveria problemas na parte em que a norma delega a possibilidade de redução de tributos, já que se trata de situação benéfica ao contribuinte e ela, em tese, fixaria parâmetros para o reestabelecimento da alíquota ao patamar previsto em lei.

 

Todavia, como bem pontuou o ministro Marco Aurélio no voto vencido, alíquota e base de cálculo são elementos essenciais do tributo e devem estar previstos em lei emanada do Congresso Nacional.

 

O entendimento do voto vencedor contraria os enunciados dos princípios da legalidade tributária, da separação de Poderes e da segurança jurídica porque não apenas flexibiliza o conteúdo da legalidade tributária, como também inova ao afastar a exigência de que somente a lei pode fixar alíquotas de tributos.

 

Se há dez anos, o Executivo, violando o princípio da legalidade, reduziu a zero as alíquotas do PIS e da Cofins, este fato não justifica que hoje o mesmo Executivo possa restabelecer ou majorar essas alíquotas[1].

 

O resultado desse julgamento tem dado margem para inúmeros questionamentos acerca do possível esvaziamento da legalidade tributária no ordenamento jurídico brasileiro.

 

Conforme a lição de Luís Eduardo Schoueri, o Legislativo, com a benção do Judiciário, abriu mão do seu dever de tratar da matéria tributária, viabilizando ao Executivo instituir tributo não previsto em lei.[2] Estes julgamentos trazem consequências práticas, porque as suas razões de decidir, chamadas de ratio decidendi, vinculam todos os órgãos do Judiciário e a Administração Pública, aqui incluído o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), podendo ser invocadas no julgamento de outros tributos que não respeitaram a legalidade tributária.

 

Uma das grandes preocupações do precedente gerado é a derrocada do próprio princípio da legalidade tributária. Afinal, admitindo-se a delegação de competência para a fixação de alíquotas, abre-se margem para que esta prática seja estendida para outros tributos do nosso ordenamento jurídico, tais como impostos e taxas.

 

Merece atenção que situação semelhante está ocorrendo atualmente no Brasil, com as medidas do Poder Executivo que objetivam reduzir alíquota de tributos cobrados sobre os combustíveis de forma indiscriminada, possivelmente em razão dessa jurisprudência da Suprema Corte.

 

Espera-se que a questão seja novamente debatida pelo STF, com um exame mais aprofundado que a matéria merece. Até mesmo porque o voto apresentado demanda esclarecimentos para que possamos compreender qual é o real posicionamento do tribunal sobre a legalidade tributária. O tema da legalidade tributária é muito caro para a garantia do Estado democrático de Direito, não sendo concebível o seu esvaziamento mediante uma decisão que se utilizou de premissas completamente questionáveis.

 

Fonte: Jota

Compartilhe

Newsletter

Cadastre-se e receba dicas e notícias da Caldeira & Godinho



    Ao continuar navegando, você concorda com a utilização de cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com as Políticas de Privacidade.